Nos últimos quatro, cinco anos, a sociedade brasileira, devido a vários fatores, dentre eles a propagação da internet, passou a viver algo semelhante à luta entre norte-americanos e soviéticos após a segunda guerra mundial: uma polarização ideológica geradora de ódios, preconceitos e medos. O brasileiro passou a sentir o que é defender partidos políticos de esquerda ou direita; muitos sem compreender os reais significados, mas carregando a bandeira político-partidária dominados por uma emoção que até então parecia estar adormecida.
Essa polarização ideológica, que faz acirrarem os ânimos, não está presente apenas nas defesas e ataques a partidos, mas também a quaisquer ideologias contidas nos dois polos. Recentemente, vem ganhando espaço, nos debates, o programa Escola Sem Partido, cujo maior apoio vem de membros de partidos como PSC, PMDB e PSDB. Os ânimos estão cada vez mais exaltados entre defensores e contrários ao projeto. Seriam necessárias várias páginas para uma melhor reflexão sobre seu conteúdo e tudo que ele envolve, mas quero abordar uma regra específica contida no programa: “O professor respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”. Embora exista uma ambiguidade na frase, pois o pronome “suas” pode se referir tanto a “dos pais” quanto a “do professor” quanto a “dos filhos”, o programa esclarece que a moral a ser respeitada é a dos pais. A falha de coerência semântica no texto é o problema menos relevante, devemos nos ater às várias consequências problemáticas que a regra implica, como, por exemplo: nem todos os pais possuem uma mesma moral, assim não há como definir o que será estudado em aula; sociedades diferentes possuem valores morais diferentes, portanto torna-se impossível estudar história, geografia, filosofia, sociologia, biologia...
Vamos ampliar a reflexão, aproveitando-nos de um tema extremamente polêmico: a Ideologia de Gênero. De acordo com o programa Escola Sem Partido, trata-se de um conceito contrário à moral conservadora (que seria, segundo seus idealizadores e seguidores, a correta, a verdadeira) de um conceito o qual possui partido, procura doutrinar a sociedade e, que, portanto, não deve ser abordado em sala de aula. Dessa maneira, qualquer aspecto presente na Ideologia de Gênero não pode ser visto na escola.
A Ideologia de Gênero, na verdade, é uma teoria sobre gêneros. De acordo com ela, há uma diferença entre o sexo biológico e as identidades masculina e feminina que, além de serem formadas por aspectos físicos, seriam também construções sociais por receberem influências históricas e sociais. Trata-se de um assunto que gera muitas discussões com extremos prejudiciais dos dois lados, tanto de quem é contra como de quem é a favor. Os mais radicais podem, por exemplo, impedir o desenvolvimento social pelo fim da homofobia, do sofrimento pelo qual passam os LGBTs; ou, do outro lado, incitar crianças a práticas sexuais, antes da idade adequada.
Essa batalha ideológica pode nos cegar, tirar-nos a capacidade de perceber que muitas teses da teoria de gêneros provocam uma transformação social positiva. A partir do momento em que o ser humano percebe que a concepção de masculino e de feminino também são construções sociais, quebram-se várias barreiras de preconceito, como por exemplo, de que homem não pode ter sensibilidade, de que mulher não pode ser forte.
Além disso, a teoria de gêneros afirma que: biologicamente, há seres humanos fisicamente masculinos, outros fisicamente femininos, e os que possuem características físicas masculinas e femininas (chamados de intersexuais, popularmente conhecidos como hermafroditas - possuem órgão sexual masculino e feminino -, ou cujo órgão sexual não se desenvolveu entre masculino ou feminino); psicologicamente, há seres humanos com desejos heterossexuais, bissexuais ou homossexuais. Porém essas afirmações não são sobre teorias, mas sim sobre fatos. Eu sei que, para muitos, é difícil entender isso, mas, caso compreendam que não se trata de ser algo “certo” ou “errado”, mas sim de um fato, muitos preconceitos e ações que causam sofrimento àquele que lhes é diferente, deixarão de existir.
O desejo em querer impor uma ideologia pode levar a interpretações erradas. Agora há pouco, li uma discussão em rede social sobre o Escola Sem Partido e a Ideologia de Gênero. Dentre as várias postagens, uma falava sobre um professor que teria exibido em sala de aula um filme de sexo entre dois homens. Caso isso realmente tenha acontecido, pode se tratar de uma ação exagerada de querer levar, ou até mesmo impor, a Ideologia de Gênero aos alunos (como não sei se realmente aconteceu, ou qual foi o contexto, trabalho apenas com hipóteses). Todavia, esse tipo de atitude é contra a lei, uma vez que menores de idade não podem ter acesso a conteúdo pornográfico. Ou seja, não é necessário um projeto como o Escola Sem Partido para resolver a situação. E lembrando que o erro existe por se tratar de cenas de sexo, e não pelo fato de ser entre homens.
Nós vivemos sob ideologias, mas é importante que tenhamos conhecimento delas e, principalmente, a capacidade de refletir sobre elas. Para isso, é necessário que a escola seja um ambiente de desenvolvimento intelectual permitindo ao aluno escolher e construir seus próprios caminhos na sociedade. O programa Escola Sem Partido impede que isso aconteça, pois obriga o professor a apresentar ao aluno somente uma parte do conhecimento, a parte cuja ideologia é a dos idealizadores e defensores do programa. A escola não pode restringir o aluno a apenas uma parcela do conhecimento. É função da escola ensinar não apenas matemática e português, mas também as demais disciplinas. E, embora seja contra a vontade dos defensores do Escola Sem Partido, alguns conceitos da teoria de gêneros estão dentro do estudo de biologia, de história, sociologia, filosofia, literatura, até de redação. Os professores das áreas devem ter a liberdade para abordar o assunto sob a fundamentação teórica da disciplina que ministram. O professor é um ser humano, e não um programa de computador que reproduz, em áudio, textos escolhidos por políticos.