“Milhares de mulheres e homens sujos, de cabelos desgrenhados e corpos esquálidos cercaram os jornalistas. (...) Os homens vestiam uniformes esfarrapados, tinham as cabeças raspadas e pés descalços. Muitos, porém, estavam nus. Luiz Alfredo viu um deles se agachar e beber água do esgoto que jorrava sobre o pátio. Nas banheiras coletivas havia fezes e urina no lugar de água. Ainda no pátio, ele presenciou o momento em que carnes eram cortadas no chão. O cheiro era detestável, assim como o ambiente, pois os urubus espreitavam a todo instante.”.
A descrição acima pode nos remeter ao holocausto ocorrido na Alemanha nazista; e sim, ela é de um holocausto, mas de uma atrocidade ocorrida no Brasil, mais precisamente em Barbacena, Minas Gerais. A descrição está no livro-reportagem Holocausto Brasileiro, da editora Geração Editorial. Trata-se de um manicômio onde ocorreu um genocídio de pelo menos sessenta mil pessoas entre 1903 e 1980. O local foi criado para atender pessoas com deficiência mental, mas acabou sendo usado para colocar pessoas “indesejadas” socialmente, como gays, negros, prostitutas, alcoólatras, opositores políticos. Cerca de 70% dos internados não possuíam diagnóstico de doença mental.
Quando pensamos em um manicômio, vêm à nossa mente as imagens de pacientes passando por torturas “tratamentos” como as do eletrochoque em que eles eram amarrados em uma maca e se contorciam ao receberem fortes choques por meio de placas colocadas na cabeça.
Essas imagens torturantes criam uma interpretação muito negativa sobre alguns tratamentos realizados hoje em dia para a melhora de pacientes. O termo eletrochoque é abominado por psiquiatras, por profissionais da Saúde, uma vez que remete às torturas pelas quais muitas pessoas passaram até alguns anos. Hoje, a eletroconvulsoterapia é um método terapêutico no tratamento de algumas patologias psiquiátricas resistentes à medicação. O paciente é anestesiado e recebe um relaxante muscular, oxigenação e monitores cardíacos, cerebrais e de pressão arterial. Só então é aplicado um estímulo muito breve por meio de dois eletrodos que são colocados na parte frontal da cabeça, o suficiente para induzir a convulsão que é vista apenas no monitor do eletroencefalograma. Durante todo o procedimento, que demora em média 30 minutos, o paciente é acompanhado por um médico anestesista e por um psiquiatra.
Sou leigo no assunto, mas vejo de maneira positiva o tratamento atual. Mas por que resolvi escrever sobre esse assunto? Acontece que, recentemente, um documento do Ministério da Saúde foi muito criticado por dar aval ao uso de eletroconvulsoterapia, por reforçar a possibilidade da internação de crianças em hospitais psiquiátricos, além de pregar a abstinência para o tratamento de dependentes de drogas. Em oposição ao documento, o qual o Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta manifestou desconhecer, o Conselho Municipal de Saúde se disse surpreendido, pois seria uma forma de incentivar o retorno dos manicômios. De acordo com o presidente do Conselho, “As pessoas com problemas mentais estão sendo cuidadas por suas famílias, reintegradas à comunidade. Isso é um retrocesso absurdo. Essas clínicas saqueavam o Estado com as internações. É preciso que a sociedade diga não a esse retorno à Idade Média”.
Minha opinião é a de que o alarde sobre a nota do Ministério da Saúde se faz pelo temor social de que este seja um caminho de abertura para o retorno de práticas desumanas e de exclusão. É uma situação muito difícil, uma vez que a eletroconvulsoterapia e a internação de pacientes, em alguns casos, são necessárias. O debate precisa de esclarecimentos, os extremismos precisam ser evitados.
A raiz do problema encontra-se no momento político-social pelo qual estamos passando. Estamos há poucos dias de um novo governo; governo este, por sua vez, com uma política de exclusão, uma política de autoritarismo e de defesa dos dominantes, da elite. São palavras do presidente da República Jair Bolsonaro “as minorias têm que se curvar às maiorias; as minorias se adequam ou simplesmente desapareçam!”. As atitudes ditatoriais tomadas pelo governo, como, por exemplo, obstrução do trabalho da imprensa, transferência do Coaf para o Ministério da Justiça aliadas às falas de Bolsonaro e de alguns membros do governo em defesa à tortura, ao assassinato de cidadãos que sejam contra o governo, ao preconceito contra negros, indígenas, LGBTs, pobres etc. nos remetem às atrocidades ocorridas em sombrios tempos aqui mesmo no Brasil, como às ocorridas na Colônia de Barbacena. Mas seria possível esse medo ideológico transformar-se em realidade, em prática? Provavelmente essa pergunta já foi feita em outros momentos da história da humanidade... e as respostas nós já sabemos... Tomara que dessa vez seja diferente.