Botucatu, sexta-feira, 04 de Julho de 2025

Colunista Rafael Paes Coluna: "O Canhoto" Graduando em Publicidade e Propaganda, Cinegrafista, Editor de vídeo
14/01/2019

Homens das marretas (dos chapéus)



Era domingo de manhã, e depois de tomar o café matinal, Giovani saiu de casa para ir à igreja, como de costume. O garoto, de doze anos, não faltava a uma missa sequer. Aqueles quatro quarteirões entre sua casa e a capela cheios de árvores e canteiros floridos eram o trajeto de toda manhã de domingo para Giovani, sua irmã mais nova, Luiza e seus pais, Rodrigo e Mariana. Era tradicional daquela família seguir a religião católica, e a cada ano que se passava, Giovani demonstrava mais amor nos cultos prestados e nas missas frequentadas.

Acontece que naquele domingo de janeiro algo chocante mudou o roteiro do garoto. Ao virar a última esquina antes da capela, exatamente no primeiro ponto do trajeto que se pode ter contato visual com aquela, que além de ser um capricho da arquitetura, é um lugarzinho carregado de emoções, experiências e significado para muitos daquele bairro, Giovani se deparou com dezenas de homens com marretas e cerca de meia dúzia de tratores demolindo a capela e escavando e toda a pracinha ao seu redor. A cada segundo passado ali, o caos parecia aumentar, cercar a família por todos os lados.

Cada marretada açoitava as costas dos que assistiam ao horror. Cada tijolo que se quebrava transformava cruelmente em pedrisco todo o carinho que fora investido naquele lugar. Cada decoração feita pelas crianças, colada nas paredes, cada cadeira de madeira, feita pela família de marceneiros do bairro, cada tapete, tecido pelo pequeno clube das tecelãs... tudo se cobria de pó e em seguida se quebrava, se rompia em meio aos destroços.

Em questão de minutos outras famílias chegaram ao local, e assim como Giovani, perdiam qualquer reação. Dentro de cada um deles, que verdadeiramente partilhava dos mesmos sentimentos a respeito da tão sagrada capela, um destruidor avalanche de emoções arrasava um a um.

- Não pode ser!! Como simplesmente decidiram coloca-la abaixo, sem ao menos nos perguntar? – Dizia uma jovem, quase se afogando em suas próprias lágrimas.

- Não era só um prédio e uma praça, era o nosso lugar de adoração! – Chorava desolada dona Leia, a mais querida velhinha do bairro.

As crianças mais novas não compreendiam exatamente o que estava acontecendo, mas podiam sentir no olhar de cada um dos mais velhos a dor da perda de algo muito íntimo.

Os homens, revoltados pela perda e inconformados com tantas lágrimas escorrendo dos olhos de suas mulheres e crianças, afastaram-se, reunindo-se na rua de trás e logo depois se achegaram novamente, de punhos cerrados, com um andar pesado, caminhando de encontro aos homens que empunhavam as marretas. Eles haviam decidido em uma rápida reunião enfrentar cada um dos que haviam demolido a capela do bairro, expulsando-os dali naquele mesmo instante, sem negociações. Então, quando o primeiro morador se atreveu a levantar a voz contra um dos demolidores, este ligeiramente sacou um revólver de trás da calça e disparou o primeiro tiro daquele dia.

A bala perfurou o peito de Flávio, que não pôde nem ao menos dar um último beijo na amada. Antes mesmo que o cano da arma esfriasse, outros tiros deram sequência ao primeiro, assim como outros atiradores se juntaram ao massacre. E assim, um por um dos moradores que haviam saído de casa para ir à missa caíam derramando um pouco do seu sangue na tentativa de defender seu lugar sagrado.

Apavoradas, as mulheres correram para longe do foco do combate, tentando salvar seus filhos da violência. Para a desgraça dessas, mais dos homens de marreta haviam tomado as ruas ao redor. No olho de cada mulher se enxergava o terror. Terror de ver o próprio companheiro ser covardemente assassinado e terror de, ao segurar pelas mãos os filhos, não ter para onde ir, de frente para mais parceiros dos assassinos do cônjuge. Talvez muitas delas tivessem segurado mais forte as mãos dos filhos, se soubessem que seria o último momento junto a eles.

Os olhos de alguns jovens, que se reuniram tomados pelo desespero, se fechavam, e assim eles ouviam um por um dos que estavam juntos de si serem levados para longe. Ainda se ouviam tiros. Crianças choravam. Ouviam-se também o que pareciam ser socos, chutes, ou agressões com objetos da rua. Ao abrir os olhos, as flores estavam jogadas às calçadas e pisoteadas. Alguns galhos grossos das árvores velhas haviam sido usados como armas. Era inimaginável uma crueldade de tão grande tamanho.

Giovani havia conseguido abrigo em meio ao caos. Quando um dos homens acertou o queixo da mãe com um golpe de revólver, o garoto saiu e se escondeu embaixo de uma lixeira grande daquele quarteirão. Naquela tarde Giovani viu o que nenhum garoto de doze anos está preparado para ver: sua tia, sua vizinha e a mãe de seu melhor amigo estavam sendo arrastadas por vários homens para a carroceria de um caminhão. Antes mesmo que tivessem terminado de jogar sua vizinha na carroceria, um dos homens havia começado a rasgar seu vestido. O desespero de Giovani estancou suas lágrimas de tristeza. O medo fez seu coração gritar, com batidas mais fortes e mais rápidas do que qualquer partida de futebol já jogada.

Quando tudo parecia ter acabado naquela rua, Giovani se levantou cautelosamente, e tentou olhar de longe para a direção de onde ainda se ouvia vozes dos homens que haviam massacrado a população daquele bairro depois de terem transformado a capela em um monte de pedras e telhas no chão:

- Isso aqui só tomava o espaço do povo! Imaginem o tamanho da fábrica que será instalada aqui! – Sonhava quase gritando um dos homens

- Isso é que é fazer o país ir pra frente: tirar o pessoal que aqui estava, limpar essa área dessa gentinha que fica fazendo as coisas só pra eles próprios, e construir algo de riqueza para toda a nação! – Exclamava com orgulho outro deles.

A respiração de Giovani ficou ofegante novamente. Sem cabeça para pensar, nem quem o ajudasse, o garotinho se colocou a correr pelo primeiro caminho que viu. Para a tristeza de Giovani, um dos homens o viu, entrando em seu caminho e o segurando violentamente.

- Achei mais um vermezinho aqui, cambada! – Gritou o homem para o resto do grupo. Alto, forte e barbudo, este homem que o segurava tinha um sorriso amedrontador, e um tom de voz que só aumentava o desespero do garoto.

- Finaliza aí então, senão ele vai chamar mais gente pra atrapalhar o nosso serviço! – Responderam, de longe.

E foi assim que um último disparo encerrou aquela tarde. E aquela vida.

O lugar sagrado, de culto, foi tomado. As terras de moradia se tornaram um caos (após dois meses, foram demolidas também as casas). Entre os moradores, alguns foram assassinados e outros, estuprados. Mais uma população foi extinta. E agora, quem delimita as áreas que pertencem aos moradores e as que podem ser invadidas para construção de fábricas são os próprios homens das marretas.

 

 

 









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