O trabalho da equipe é feito com muito profissionalismo, já que o dia a dia é triste e quando se atende alguém, geralmente, é para comunicar que perdeu um ente querido e precisa fazer o sepultamento
Por: Jair Pereira de Souza
A profissão do servidor público Décio de Campos é complexa, interessante e curiosa. Ele exerce a função de administrador geral do cemitério Portal das Cruzes, já há 26 anos, que fica ao final da Avenida Dom Lúcio, no centro de Botucatu e foi aberto para sepultamentos em 1893. Outros três cemitérios funcionam na cidade: o Jardim, no Jardim Aeroporto, o do Distrito de Vitoriana e o cemitério e crematório Memorial, na Vila Regina, este particular. O Portal conta com um sistema informatizado de consulta que permite a população encontrar com facilidade data e número de sepultamento, filiação, quadra, rua e número do jazigo onde a pessoa foi sepultada.
A reportagem do Alpha Notícias procurou o administrador do Portal das Cruzes, que conta com uma equipe de 14 funcionários, para que descrevesse um pouco de sua trajetória e como administra o cemitério, onde estão os restos mortais de pessoas que fizeram parte da história de Botucatu. Entre outras coisas Décio relata que no Portal não existe mais o sistema de concessão para adquirir um jazigo.
“Na realidade aqui (no Portal) não temos mais espaço para novas concessões só as famílias que já são proprietárias de jazigos podem fazer sepultamentos e não é permitida a transferência de jazigo para outra pessoa. Se alguém quiser vender ou mesmo doar um jazigo não é permitido porque a concessão é perpétua. Agora, caso o proprietário de algum jazigo autorizar o sepultamento de alguém que não pertence à família ele vem até a administração do cemitério e assina um documento autorizativo”, conta o administrador.
Ele aponta que o trabalho de sua equipe é feito com muito profissionalismo, já que o dia a dia é triste e quando atende alguém, geralmente, é para comunicar que perdeu um ente querido e precisa fazer o sepultamento. “Nesta hora atendemos com muito carinho essas pessoas e damos toda a atenção e explicamos os procedimentos a serem adotados para o velório e sepultamento. É necessário o familiar assinar um termo de responsabilidade para que nossos funcionários possam fazer a abertura do jazigo e deixar tudo preparado para receber o funeral. Só que para acontecer a abertura do espaço onde já foram sepultadas pessoas da família, é respeitado um prazo mínimo de três anos para adultos e dois anos para crianças até seis anos”, relata o servidor público.
Décio Campos revela que um dos maiores e mais graves problemas enfrentados durante décadas pelo Portal foi com relação ao necrotério que funcionava dentro do cemitério. “Desde março de 2009 o necrotério foi interditado e mais nenhuma necropsia é feita aqui neste local. Quando funcionava o necrotério aqui sofríamos muito com o mau cheiro e sequer tínhamos um local adequado para o almoço. No espaço onde funcionava o necrotério fizemos um depósito de máquinas e ferramentas utilizadas para o serviço do cemitério. Foi esta a pior fase do cemitério”, lembra.
O administrador também salienta que existe um serviço particular para melhoramentos de jazigos, realizado por duas pessoas que recolhem o Imposto de Seguridade Social (ISS) para poder trabalhar, sem nenhum vinculo com a Prefeitura. “Quando é feito esse melhoramento, um revestimento de mármore, granito ou piso comum é cobrado uma taxa que varia de acordo com o tipo de material que é usado”, diz.
Décio enfatiza que o Portal das Cruzes tem 60 mil metros quadrados que equivale a duzentos metros de largura por 300 de comprimento. Atualmente existem 61.200 pessoas sepultadas e o primeiro sepultamento foi de uma criança recém-nascida com 25 dias de vida chamada Benedito Pereira da Silva, em 25 de agosto de 1893. O jazigo mais visitado e considerado ponto turístico, é o da Ana Rosa (mulher que foi assassinada, a mando marido Chicuta, em 21 de junho de 1885 e para muitos é milagreira). Depois vêm os jazigos dos prefeitos antigos de Botucatu. O maior contingente de pessoas acontece no Dia Finados, Dia das Mães e Dia dos Pais. Durante a semana o dia preferido é sexta-feira.
Nesses anos todos administrando o cemitério, Décio Campos passou por muitos momentos, convivendo com milhares de pessoas que passaram pelo local e testemunharam os sepultamentos. “Que eu me lembre, o sepultamento que teve o maior numero de pessoas presente foi o do radialista e ex-prefeito Plínio Paganini. No momento em que estava sendo realizado o sepultamento muitas pessoas ainda estavam adentrando ao portão principal do cemitério. Foi uma loucura”, lembra.
Décio Campos também conviveu com momentos inusitados. “Não tenho como relatar tudo o que passei nesses anos, mas um caso, realmente, me marcou. “Um determinado dia quando cheguei para trabalhar, às sete horas, um funcionário veio ao meu encontro para relatar que havia uma pessoa dormindo em cima de um túmulo. Fui até o local e era alguém que eu conhecia e me pediu para ficar mais um tempo no local. O jazigo era o de sua mulher que havia sido sepultada um dia antes”, conta.
Outra situação ocorreu na capela do cemitério, que muitos chamam de “capela do raio”, numa época de verão e chuva. “Uma pessoa que se encontrava dentro do cemitério, entrou na capela para se proteger da chuva e, neste momento, caiu um raio e atingiu a capela e essa pessoa que morreu na hora. Logo que parou a chuva a visitação no cemitério continuou e passando em frente à capela um cidadão viu dentro dela uma pessoa deitada e até pensou que era um boneco. Imediatamente comunicou a administração. O estrago foi grande a tal ponto que fez uma grande rachadura na parede e danificou alguns túmulos ao redor da capela”.
O administrador salienta que existem dois jazigos tombados e que não podem ser modificados, pois se trata de patrimônio histórico. Um deles é de Henry Oliver Burton que também tinha o apelido de Marcum Bode, sepultado no ano de 1899, capitão americano que fugiu da guerra da recessão dos Estados Unidos, travada entre 1861 e 1865, veio para o Brasil e chegou a Botucatu aonde faleceu e foi sepultado na quadra 1. O valor é que a história de um dos maiores filmes de todos os tempos, “E o vento levou...” foi baseado neste episódio de Burton. Outro jazigo tombado é do Lee Milton, sepultado em 1895, também um americano.
Verdadeiramente, o Cemitério Portal das Cruzes é um repositório de nossa história. Nele estão enterradas as figuras mais destacadas que construíram Botucatu, lado a lado com os cidadãos comuns, anônimos, deserdados, trabalhadores livres emigrados de terras distantes, ou escravos, que jogaram papel importante na busca de nossos destinos como cidade. O cemitério Portal das Cruzes é um Cemitério Republicano, comum, igualitário e fraterno. Por essa razão o mínimo que se pode esperar de toda a cidade é que torne imorredoura a homenagem que nossos mortos merecem, tornando perpétua a lembrança.